Temos nessa história como protagonista o “Le Cirque des Rêves”, ou “O Circo da Noite”: um circo que abre apenas à noite e fecha ao amanhecer, mas não possui uma atmosfera sombria, pelo contrário, é um local que transborda magia, alegria e acolhimento. Nós acompanhamos seu planejamento, construção e todas as histórias que circulam no seu interior.
Se magia existisse, eu diria que esse livro consegue extraí-la e passá-la para o leitor de uma forma praticamente perfeita.
A escrita de Erin Morgenstern trabalha além dos sentidos visuais, fazendo um trabalho impecável ao explorar nossos sentidos juntamente com a narrativa. Eles não estão lá meramente para descrever um local, mas também para trazer uma imersão a quem está lendo.
“O circo chega sem aviso. Simplesmente está ali, quando ontem não estava. […] Há o cheiro de caramelo no ar, tão forte que é possível saboreá-lo antes mesmo de vê-lo.”
“O circo parece estranho durante o dia, silencioso demais. […] O cheiro é o mesmo que tem à noite — caramelo e pipoca e fumaça da fogueira —, só que mais brando.”
A escrita é justamente o caminho para trazer a magia a nós, leitores, e a história possui esse diferencial: suas descrições são detalhadas, feitas para serem admiradas e te transportam para aquele local. Mas, além disso, querem te comunicar aquilo que os personagens não podem.
As próprias cores utilizadas nos falam muito -seja sobre os personagens ou as características e objetivos do próprio circo-. Sua paleta é branco, preto e cinza, o vermelho entra como um instrumento auxiliar nessa comunicação. Nesse momento, alguns de vocês podem estar pensando o porquê dessa paleta específica. O próprio livro nos fala um pouco, mas farei uma análise à parte.
“Temos um esquema de cores fixo, querida — ou uma falta de cores, na verdade. Nada além de preto e branco.”
“É um lugar encantado, mas não é feito de cores vivas. É uma beleza mais sutil. Uma beleza elegante e controlada.”
O objetivo vai além de se diferenciar de outros circos “normais”, caracterizados por tendas coloridas e extremamente vibrantes, sendo as mais marcantes o vermelho e o amarelo. Porém, aqui temos a presença de cores frias (ou a falta delas), como dito no trecho. Isso, por si só, já se destaca do comum e, de uma maneira contida, chama a atenção de quem se aproxima.
Outro objetivo é levar a atenção do público não para a estrutura, mas sim para as atrações que o compõem -desde o relógio da entrada, passando pela fogueira central e chegando até as atrações dentro das tendas-, tornando a experiência mágica e misteriosa.
Vamos falar um pouco sobre o que essas cores trazem para a narrativa, usando como base o livro A Psicologia das Cores: Como as cores afetam a emoção e a razão, de Eva Heller.
Heller descreve o preto como “A cor do poder, da violência e da morte. A cor predileta dos designers e dos jovens. Cor da negação e da elegância. Aliás, o preto é uma cor?” (p. 16).
Aqui já vemos que o preto conversa com toda a disputa de poder entre o “Le Cirque des Rêves” e os outros, além da disputa entre os próprios mágicos que comandam uma competição existente na história. E não podemos negar a sofisticação presente em todo o livro. É algo que Christophe Lefèvre -o idealizador e anfitrião do circo- sempre prezou bastante, desde os figurinos, estruturas e pessoas que trabalham no local.
Partindo para o branco, ela o descreve como “A cor feminina da inocência. Cor do bem e dos espíritos. A cor mais importante dos pintores” (p. 17).
Enquanto o preto traz o poder, o branco chega para contrastar, levando a ideia de inocência e leveza, retomando o conceito de etéreo e mágico do local, dando espaço para que os artistas do circo produzam suas artes com destaque, além de permitir que Marco e Celia travem sua competição.
A última das três cores principais: o cinza. Esse é descrito como “Cor do tédio, do antiquado e da crueldade” (p. 20). Parece uma descrição cruel, mas é utilizada para o contraste e a surpresa do espectador ao entrar no local. O que parece apenas um circo solitário é, na verdade, um outro mundo que está além das expectativas de qualquer um. O cinza também está associado ao segredo, algo que não obedece a nenhuma norma. Isso também se aplica ao circo: muitos querem saber seus segredos e se juntam para criar teorias e acompanhar seu trajeto.
Partindo para a cor agregada, aquela que carrega o contraste com as cores frias citadas anteriormente: o vermelho. Ele é descrito como “A cor de todas as paixões — do amor ao ódio. A cor dos reis e do comunismo. A cor da felicidade e do perigo” (p. 14).
Aqui, ela possui um papel de destaque: é a vida no meio da monocromia, sendo associada aos rêveurs, palavra em francês que significa “sonhadores”.
“Os rêveurs são fáceis de identificar, de longe, pela cor de seus cachecóis vermelhos, sempre amarrados de forma simples, de forma a parecerem despretensiosos. Mas a verdade é que não há nada simples nos cachecóis vermelhos. São os emblemas silenciosos de um pacto, um vínculo secreto, um pertencimento sem palavras.”
Esse grupo é composto por pessoas apaixonadas pelo circo, dispostas a segui-lo, passando informações e teorias, e compartilhando momentos com outros rêveurs. Eles são um público fiel, que não apenas visita o circo, mas o vive e sente mais que os outros visitantes. Se caracterizam com um cachecol vermelho ,cor associada aoo amor, paixão e vida. Nem preciso dizer mais nada.
Quando abri meu Kindle, esse foi o primeiro livro que li -já que estava gratuito no Kindle Unlimited- e eu não sabia o que me esperava. Li sem intenções e acabou se tornando um dos meus livros de fantasia favoritos. Essa é apenas uma camada do que pode ser discutido dentro dessa história.
Espero que essa análise te faça ficar tão apaixonado quanto eu fiquei. Se esse circo existisse, eu seria parte dos rêveurs. É um livro definitivamente encantador.
Um beijo, até o próximo post!!
