Natal Por Outros Olhos

Autora: Thaise Nascimento.

A primeira coisa que notei naquela noite foi o cheiro.

Não era perfume, nem comida, nem gente. Era o cheiro específico de quando o tempo resolve passar devagar, como se estivesse tateando a sala antes de entrar. Sou antiga o bastante para reconhecer esse odor. Ele sempre aparece quando alguém falta e ninguém diz o nome.

Estou imóvel no centro de tudo.

Vejo sem olhos. Sinto sem pele. Sou tocada com cuidado excessivo, como se pudesse quebrar, embora saibam, no fundo, que quem está frágil não sou eu. Cada contato deposita algo em mim: um gesto interrompido, uma palavra guardada, um pedido feito em pensamento.

Coleciono reflexos. Espalho-os pela sala. Algumas superfícies devolvem risos que não existem mais. Outras mostram versões tortas de quem passa, como se a realidade tivesse sido mal pendurada.

Há pequenos pontos de luz surgindo aos poucos. Ninguém percebe quando começam, apenas quando já estão piscando, indecisos, como uma memória que não sabe se dói ou aquece. Eles falham de propósito. Aprenderam com os humanos que insistir demais cansa.

Ouço conversas pela metade. Frases que começam firmes e terminam suspensas no ar, como se o resto fosse perigoso. A saudade ocupa um lugar específico da casa. Não grita. Não precisa. Ela senta.

Sou testemunha da cadeira que não se move.

Alguém se aproxima de mim sem intenção clara. Fica parado. Respira fundo. Percebo um tipo raro de coragem: a de permanecer. O olhar pousa em mim como quem procura uma explicação que não seja resposta.

Há algo em mim que organiza o espaço. Quando cheguei, ou fui trazida, não lembro bem —, a casa mudou de eixo. As pessoas começaram a circular de maneira diferente, como se minha presença criasse uma gravidade discreta, rearranjando afetos.

Não pertenço exatamente a este lugar, mas enquanto estou aqui, tudo acontece ao meu redor.

A noite avança. O silêncio se adensa. O mundo encolhe até caber numa sala. E é então que percebo: apesar de tudo, ninguém desmonta nada. Pelo contrário. Permanecem. Ligam, desligam, ajustam detalhes mínimos, como se a sobrevivência dependesse disso.

Entendo, enfim, o motivo da minha existência. Não vim para enfeitar. Vim para sustentar.

Sou feita de algo que não brota da terra. Sou montada com mãos cansadas, erguida no esquecimento de quase um ano, guardada em silêncio, e ainda assim retorno. Sempre retorno. Porque, enquanto me colocam de pé, no coração da casa, alguém acredita, mesmo sem coragem de dizer, que a luz pode ser reaprendida. Enquanto eu for retirada da caixa, haverá família reunida, haverá rito, haverá mesa. Ainda se celebrará o nascimento do menino de Belém.

Quando a última lâmpada insiste em ficar acesa e alguém murmura “Feliz Natal” com a voz falha, a verdade se oferece inteira: sou árvore. Não de bosque, mas de lembrança. Sou a árvore de Natal. E enquanto eu estiver em pé, o amor — mesmo torto, mesmo cansado — ainda terá onde se pendurar.

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Isa e Mari

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Somos duas amigas que compartilham de uma paixão pelas áreas da linguística e literatura, com isso, decidimos compartilhar nossos aprendizados, ideias, resenhas e outras coisas a mais…

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