Autora: Stephany Freitas.
Naquela rua estreita, o Natal nunca chegava inteiro.
As casas se apoiavam umas nas outras como quem aprende a sobreviver junto. Eram construções antigas, de paredes gastas, que carregavam marcas de outras épocas: rachaduras preenchidas às pressas, janelas trocadas por modelos improvisados, varais atravessando fachadas como linhas de continuidade. À noite, as luzes natalinas piscavam em ritmos desiguais — algumas insistentes, outras tímidas — revelando que nem toda celebração nasce da mesma esperança. Ainda assim, havia algo comum entre elas: a tentativa.
Miguel observava a rua da janela do segundo andar. Gostava daquele ponto fixo. A cadeira de rodas não era o centro da sua vida, mas estava sempre ali, lembrando-o de que o mundo fora desenhado com medidas que não incluíam o seu corpo. Ele aprendera a existir apesar disso — às vezes com coragem, às vezes apenas ficando. Ficar também era uma forma de resistência.
O acidente acontecera três anos antes, numa tarde comum demais para justificar a mudança que provocara. Não havia chuva, nem pressa, nem distração heroica. Apenas um segundo fora do lugar. Às vezes, Miguel tentava lembrar do instante exato em que tudo mudou, como se compreender aquele ponto pudesse devolver alguma parte de si. Mas a memória vinha fragmentada, cheia de lacunas. O corpo se partira antes da fé. Depois, foi a fé que precisou reaprender a ficar de pé.
Nos primeiros meses, ele acreditara que a perda era provisória. Que tudo voltaria ao normal, como um intervalo mal calculado. Quando entendeu que o normal não voltaria, sentiu algo ainda mais difícil de nomear: não era só dor, era deslocamento. Como se o mundo tivesse seguido em frente sem consultá-lo.
Na sala, a mãe montava o presépio com um cuidado quase sagrado. Fazia isso todos os anos, repetindo os mesmos gestos, na mesma ordem, como quem segura o tempo com as mãos. As imagens eram antigas, herdadas de gerações que acreditavam sem perguntar tanto. Algumas tinham pequenas falhas, o nariz gasto, a tinta descascada. Ela nunca tentou consertá-las. Dizia que o tempo também fazia parte da fé.
O Menino Jesus ficava guardado até a noite do dia vinte e quatro.
— Fé também é espera — dizia, sempre.
Miguel ouvia em silêncio. A fé dele já não se parecia com aquela. Não cabia mais em orações prontas nem em certezas absolutas. Era feita de dúvidas, pausas longas e conversas internas que nunca chegavam a um final claro. Mas ainda estava ali, mesmo frágil. Talvez justamente por isso fosse real.
— A ceia da Dona Rosa vai acontecer — disse a mãe, sem olhar diretamente para ele. — Se você quiser…
Ela não completou a frase. Aprendera, com o tempo, que Miguel precisava de espaço para decidir. O amor dela agora se manifestava assim: oferecendo, nunca impondo.
Miguel sentiu o peso da pergunta. A ceia comunitária era um encontro de tudo o que ele evitava, e, ao mesmo tempo, sentia falta: pessoas, vozes, presença. Havia os degraus estreitos, os silêncios constrangedores, as ajudas não pedidas. Havia também os olhares que demoravam demais, como se tentassem decifrá-lo. Mas havia algo mais — algo que ele não conseguia nomear. Uma possibilidade.
— Talvez — respondeu.
O “talvez” era o espaço onde ele vivia agora. Nem recusa, nem entrega total. Um intervalo onde ainda era possível respirar.
Miguel escolheu a camisa azul. Gostava dela porque o fazia sentir inteiro, não reduzido ao que lhe faltava. Vestir-se era um gesto simples, mas carregava um esforço silencioso de afirmação. Antes de sair, tocou o pequeno crucifixo pendurado atrás da porta. Não pediu nada. Apenas permaneceu ali por alguns segundos, como quem reconhece uma presença mesmo quando não a entende.
No corredor, encontrou Giulia, a vizinha italiana do apartamento ao lado. Ela carregava um prato coberto por um pano bordado à mão, com delicadeza quase cerimonial.
— Buon Natale — disse ela, sorrindo. — Quer dizer… Feliz Natal.
Giulia viera da Itália anos antes, trazendo consigo o sotaque carregado, receitas herdadas da avó e uma fé silenciosa, vivida mais nos gestos do que nas palavras. Para ela, cozinhar era uma forma de cuidado, e cuidar era uma forma de oração.
— Feliz — respondeu Miguel.
Ela participava da ceia todos os anos. Dizia que a mesa era o lugar onde Deus mais gostava de ficar. Miguel nunca soubera se acreditava nisso, mas gostava da ideia de um Deus que se sentava, partilhava e escutava.
O térreo estava cheio. A mesa longa ocupava quase todo o espaço, improvisada com tábuas antigas e cadeiras que não combinavam entre si. Havia cheiros misturados, vozes cruzadas, risadas contidas. Cada pessoa carregava sua própria história — algumas abertas, outras ainda fechadas demais para serem ditas.
Dona Rosa organizava tudo com autoridade afetuosa. Seu Elias permanecia mais afastado, trazendo nos olhos um luto que ainda não aprendera a dividir. Joana e Marina sentavam-se lado a lado, mãos entrelaçadas, existindo sem pedir permissão. Crianças corriam livres, ainda alheias às fronteiras que o mundo insiste em construir.
Miguel chegou devagar. Alguém segurou a porta. Outro afastou uma cadeira. Não houve excesso, nem pena. Apenas espaço.
E isso era raro.
Durante a ceia, falava-se de coisas simples: trabalho, saudade, pequenas alegrias. Havia pausas naturais, risos inesperados, silêncios que não constrangiam. Em certo momento, Dona Rosa pediu silêncio.
— Não pra rezar igual — disse. — Mas pra agradecer. Cada um do seu jeito.
Miguel fechou os olhos.
Pensou no corpo que precisara reaprender a habitar. Pensou na fé que agora se manifestava mais nos encontros do que nas certezas. Pensou em quantas vezes acreditara que não cabia mais em lugar algum.
Talvez Deus estivesse ali — não nas respostas, mas na escuta; não na perfeição, mas na partilha.
Quando abriu os olhos, Giulia lhe ofereceu um pedaço de pão ainda quente.
— Receita da minha avó — disse. — É pra dividir.
Miguel aceitou.
À meia-noite, alguém colocou o Menino Jesus no presépio. Não houve anúncio. Apenas aconteceu.
Miguel sentiu algo aquecer o peito. Não era milagre. Era acolhimento.
Percebeu, então, que o Natal não era sobre ser igual, nem sobre estar completo. Era sobre caber — com corpos diversos, fé imperfeita, histórias interrompidas e recomeços possíveis.
Naquela noite, Miguel coube inteiro no mundo.
E a luz, finalmente, o alcançou
