Autor: Eber V. Rocha.
— Foi no dia em que meu pai chorou, mãe?
— Não, Dodô, não foi no dia em que seu pai chorou. Agora come os legumes também. Você está deixando tudo no canto do prato.
— Que horas é o médico? — perguntou Dona Rute à filha, enquanto a ajudava a recolher os pratos sobre a mesa.
— 14h30 — respondeu Helen. Logo em seguida, olhou para o relógio na parede da cozinha. — E já vai dar 13h30. Dodô, já acabou?
O menino pareceu não ouvir. Não disse nada enquanto mastigava e brincava com os talheres.
— O consultório é no centro? — perguntou Dona Rute.
Helen retirou o restante dos talheres da mesa e jogou-os na pia.
— Isso fica para quando eu voltar — declarou para si mesma, ou para o universo.
— Sim, é no centro. Não podemos demorar para sair.
— Por que ele chorou, mãe? — perguntou o menino.
— Você acabou, Dodô? — disse Helen, já recolhendo o prato, ainda com alguns legumes, e retirando os talheres das mãos do menino.
— Do que ele está falando, Helen? — perguntou Dona Rute.
— Nada, mãe, besteira — respondeu Helen.
Ela desamarrou o avental e olhou em volta da cozinha, como se alguma coisa estivesse faltando, porém não fazia ideia do que.
— Mãe, depois do médico vou comprar decoração de Natal. Devemos estar de volta lá pelas cinco.
— Agora? O Natal já está logo ali. Você vai trazer a árvore?
— Não, só a decoração. O Nico vai trazer a árvore. Vai nos encontrar lá. Pelo menos ele disse que vai.
— Papai vai trazer a árvore, mãe?
— Vai, Dodô, ele vai.
Velas, lembrou. Tenho que comprar as velas.
Saíram trinta minutos depois. Dodô, sentado em seu assento no banco traseiro, começou a bocejar antes mesmo de o carro se mover, anunciando que iria dormir durante todo o caminho.
Helen olhou o relógio digital no painel e teve certeza de que iriam se atrasar.
Espero que ele não acorde de mau humor, pensou, observando o filho pelo retrovisor.
Enquanto o carro deslizava pela rodovia, o Natal de quatro anos atrás surgiu em sua memória. Seu filho mais velho, Lucas, tinha sete anos na época, e ela estava grávida de Dodô. Nico trabalhava no centro. Ele gostava de trabalhar lá, pelo menos até aquela tarde. Helen lembrou do dia em que o marido foi demitido. Lembrou de quando ele saiu de casa de manhã, e do momento em que ela ligou para dizer que a luz tinha sido cortada por falta de pagamento.
— Como assim cortaram? — Nico esbravejou ao telefone.
— Cortaram. Um homem da companhia elétrica veio aqui e pediu o comprovante de pagamento do último mês. Eu disse que ainda não tinha sido pago. Ele deu as costas e, depois de uns minutos, a luz parou de funcionar.
Nico olhou em volta. Através do vidro, viu as pessoas conversando nas salas adjacentes. Seu olhar se deteve no calendário na parede.
— Helen, faltam dois dias para o Natal… Se não pagarmos hoje, eles não vão religar a tempo. Só na próxima semana.
— Eu sei, Nico. Mas não podemos gastar o que temos. E o presente do Lucas? E a comida pra ceia?
Helen ouviu a respiração forte do marido. Sabia que ele tentava se controlar.
— Presente para o Lucas, Helen? Ceia? Você quer ficar o feriado todo no escuro? Você não acha que temos que ter prioridades?
— Mãe, falta muito? — perguntou Dodô, com os olhos abertos, contemplando os prédios, as decorações de Natal e as pessoas do lado de fora.
— Não sabia que você estava acordado. Não, querido, o prédio é aquele ali.
Helen estacionou no subsolo e seguiu direto para o consultório da pediatra.
— Abra bem a boca — mandou a pediatra, enquanto examinava a garganta de Dodô.
Depois, com o estetoscópio, passou a ouvir seu coração e seus pulmões.
— Meu pai chorou, sabia?
— Dodô! — gritou a mãe.
— Seu pai chorou? — perguntou a médica, colocando o estetoscópio no bolso do jaleco e sentando-se na cadeira.
— O Lucas disse que ele chorou. Ele viu.
A médica sorriu e fez um sinal com o olhar, questionando Helen.
— Meu filho mais velho comentou para ele que uma vez viu o pai chorar, e agora o Dodô não pensa em outra coisa.
A médica sorriu novamente. Depois comentou sobre a boa saúde do menino, mencionou o crescimento, que também estava normal, e disse que só precisava vê-lo novamente em seis meses.
No carro, dirigindo para o centro comercial, as lembranças voltaram a inundar os pensamentos de Helen. As palavras de Nico, relatando o acontecido naquela tarde, quatro anos antes, ainda estavam vivas na memória.
— Você falou com ele, Nico?
— Falei. Nada feito. Ele disse que não pode me adiantar mais nenhum centavo, que eu já peguei demais…
— Você explicou o motivo?
— Claro que expliquei, Helen. Falei da gravidez, dos remédios e da conta de luz. Ele não deu a mínima, disse que não podia fazer nada, que todos tinham problemas. Inclusive ele.
Um silêncio de um minuto inteiro se fez no telefone.
— O que vamos fazer? — questionou Helen.
— Ele me demitiu — falou Nico, baixinho.
— O quê?
— Ele me de-mi-tiu — repetiu Nico, com mais força na voz e de forma pausada.
— Demitiu? Meu Deus, Nico, você está falando sério?
— Calma, amor, fica calma — pediu Nico, arrependendo-se de ter contado. — Vai ficar tudo bem.
— O que aconteceu, Nico? — perguntou Helen, respirando de forma pausada.
— Depois que ele negou o adiantamento, pedi para sair mais cedo, sabe, ir pagar a luz e tentar que a energia fosse religada. Ele disse não. Que estava cansado disso. Que aquilo era uma empresa, não uma instituição de caridade. Discutimos, e ele me demitiu.
Um novo silêncio se seguiu, e Nico sabia que Helen chorava. Mas não sabia o que dizer.
Nico chegou ao escritório da companhia de energia elétrica exatamente às 16h30, meia hora antes de fechar. Havia poucas pessoas no local, uma deprimente decoração de Natal com o desenho de um sorridente raio usando um gorro de Papai Noel.
Sentou-se em uma desconfortável cadeira na ala de espera, porém não precisou esperar muito para ser atendido. Nico explicou sua situação à atendente e, em seguida, realizou o pagamento devido.
— Que horas a energia será religada?
— Senhor, após o sistema reconhecer o pagamento, a luz pode ser religada em até dois dias úteis.
Nico sentiu um frio na barriga e a raiva tomando conta.
— Você não está entendendo. Eu poderia ter pago no banco ou online. Optei por vir até aqui justamente para ter a certeza de que a luz seria religada antes do Natal.
— Senhor, realizar o pagamento aqui foi uma boa escolha, porque, se fosse no banco, o pagamento só constaria em nosso sistema amanhã. Entretanto, não posso garantir que a energia será restaurada antes de segunda-feira, quando será o segundo dia útil.
— Por favor, me ajude. Eu tenho uma pessoa idosa que necessita de energia elétrica para um aparelho médico — Nico mentiu.
— Vou colocar um aviso de urgência no sistema, mas realmente não posso garantir nada.
Como um milagre de Natal, Helen conseguiu uma vaga próximo à loja que procurava. As calçadas estavam cheias de pessoas, gente entrando e saindo das lojas.
Helen retirou Dodô do assento e repassou mentalmente o que tinha que comprar: velas, enfeites, presentes e farmácia. De mãos dadas, andaram alguns passos até entrarem numa loja de departamentos.
— O papai está aqui?
— Ainda não, vamos encontrá-lo mais tarde.
O menino olhava tudo em volta, tentando tocar no máximo de coisas que conseguia. Helen fez sinal para uma funcionária da loja, que usava um gorro de ajudante de Papai Noel na cabeça.
— Posso ajudar? — perguntou a funcionária, demonstrando estar bastante cansada.
— Estou procurando velas.
— Terceira prateleira à esquerda — respondeu ela no automático.
— Obrigada.
Helen escolheu várias velas, muito mais do que deveria, pensou. Colocou-as no carrinho sem saber exatamente o que fazia, como nos últimos 3 anos, de forma automática, com os pensamentos nas velas de quatro anos atrás. Cumprindo um ritual, a tradição, que de certa forma fora iniciada por Nico, e que ela com prazer vinha mantendo viva desde então.
— Pronto — anunciou Nico, no momento em que acendeu a última vela restante na cozinha.
A pequena chama iluminava pouco o ambiente, mostrando a mesa arrumada com os pratos, Lucas sentado no chão, perto de uma das cadeiras, com o olhar amedrontado, olhando fixamente para a galinha encolhida perto do sofá.
— Você precisava mesmo ter feito isso? — perguntou Helen, com insatisfação na voz.
— Depois que eu paguei a conta de luz e comprei as velas, foi o que deu pra comprar. Achei que você sabia como preparar…
— Eu não sei e nunca mataria uma galinha — esbravejou Helen. — Por que você não mata?
— Eu? — perguntou Nico. — Não sei como fazer isso — desviando a atenção para o rádio de pilhas que trazia consigo.
— A sopa está pronta — anunciou Helen, dando por encerrada a discussão.
— Vem, Lucas — chamou o pai.
Enquanto Helen trazia a panela com a sopa para a mesa, Nico sintonizou uma estação com músicas natalinas.
Ela serviu o filho e depois se serviu. Ao som de Noite Feliz, Nico usou a concha para se servir também.
— A Rádio Novo Amanhecer traz para você as mais lindas músicas de Natal para o seu deleite — disse o locutor após o término de Noite Feliz.
Tomaram a sopa em silêncio. A última vela apagou.
— Mamãe — disse Lucas, com medo.
— Está tudo bem! — confortou Helen, tateando no escuro e tocando seu braço.
O rádio começou a tocar Jesus, Alegria dos Homens.
— Acho melhor irmos dormir…
Helen foi interrompida pela claridade na cozinha ofuscando seus olhos.
A luz foi religada.
Lucas olhou em volta, viu a alegria no rosto da mãe e as lágrimas que escorriam do rosto do pai.
— Mamãe, o papai está chorando.
