Desencontros na Noite de Natal

Autor: Maurício Maia.

Sua avó deixou a bermuda lavadinha na cadeira junto a blusa, arrumou o tênis no chão e colocou por cima das roupas a cueca novinha que comprara para ele na feira de malhas, que acontecia uma vez por mês na principal praça da favela. Chico saiu do banho, vestiu-se e sentou-se à mesa para jantar, tudo em paz após mais um dia suado e calorento sobre aquele banco da bicicleta.
Dona Florzinha o criou no sacrifício e lutou muito para não o deixar seguir o rumo de alguns amigos, que morreram cedo na criminalidade. Chico se formou aos trancos e barrancos. Mudou algumas vezes de colégio, ação das intermináveis guerras de traficantes, precisou estudar em lugares distantes. Quando ia tentar outros colégios da região, o neto pedia insistentemente para não o matricular, as brincadeiras no recreio não seriam agradáveis com os garotos de outras favelas. De tanto insistir, sua avó conseguiu um bom colégio em um bairro um pouco mais seguro onde não havia meninos violentos que machucariam seu neto. Ali também veio encontrar uma santa professora, carregava uma paciência e carinho por aquele menino, e o ajudou até a sua formação no ensino médio.
Sobrevivente neste mundo cão, Chico tem uma bicicleta cargueira, e a usa para realizar entregas. Ganhou um celular usado do tio para receber chamadas, e atende as pessoas ali do lugar. Nos grupos das redes socias do bairro, ele é sempre recomendado, principalmente para os idosos que mal saem de casa.
Todos os dias sai para procurar um trabalho de carteira assinada, entrega currículos, mas passam os meses e não arruma nada. Ouve sempre que o seu endereço não facilita.

— Morar em área de risco, é palpite certo que serão as desculpas para faltar e ficar à toa pela favela. Essa gente não quer nada!, é a frase que fica saltando às suas costas quando fecha a porta da sala de entrevistas.

Aquele quebra-galho de entregador ajuda nas pequenas despesas, mas os sonhos ultrapassam os muros imaginários que sua avó criou para protege-lo. Comprar a casa em lugar seguro para a mulher que o criou nessa vida após a morte de seus pais (faleceram doentes em um leito frio de hospital, sua mãe de infecção nos rins causada por anos de trabalho em uma perfumaria e o pai perdera os pulmões na fábrica de açúcar), é o seu maior sonho. Seria uma forma de recompensa-la por todo o sacrifício que faz por ele. Sabe que para conseguir um bom emprego precisa estudar, ter uma profissão.
No começo do ano, descobriu que perto de casa abriu um curso público gratuito de instalação e manutenção de ar condicionado, e imediatamente o procurou para se inscrever. As aulas transformam a cada dia o seu conhecimento, traz para Chico um aumento da sua vontade de mudar sua vida e da sua avó.
Agora que está chegando o final do ano e o término do curso, consegue uma vaga de ajudante de serviços gerais em uma empresa de instalação de Ar perto da sua casa. O dono da oficina é pai de um dos amigos de Chico na escola e sabe que aquele rapaz é boa pessoa.
No seu primeiro dia de trabalho, vai com um dos instaladores (ficará um período em treinamento), para colocar uma Central de Ar em um cabelereiro. Ali aconteceu aquele momento que transformaria toda a sua vida ao cruzar seu olhar com o de Débora, uma linda moça na flor da sua juventude, que poderia lhe ensinar as maldades e os prazeres da vida. Apaixonou-se, aquela mancha azul em seu cabelo, os cachos, a fita pendurada em uma fina trança, o brilho do piercing em seu queixo. Parecia uma criança diante de algo que jamais vira na vida, a cara de admiração ficava parada, estática, encantado com a garota do vestido rosa que a deixava mais linda.
O tempo que passa ali trabalhando, não consegue desviar dos olhos de Débora. Pede um pouco de água e a acompanha até a cozinha. Na geladeira desbotada pelo tempo, ela pega uma garrafa de vidro:

— é água do filtro de barro!, diz lhe entregando o copo.

Fica um tempo parada na sua frente com um ar de curiosidade, mas não diz uma palavra. Sem desviar da atenção que mantinha sobre ela, ele também permanece calado.

— Ôh, gente boa! Não tamo aqui pra ficar de bobeira. Bora pegar no pesado?!, a voz do senhor que faz sozinho o serviço trouxe Chico de volta.

— Suave, tô indo!, fala calmamente Chico.

— Suave, suave! Essa juventude quer nada!, resmunga seu colega mais velho e cansado, que vai lhe entregando uma chave para apertar alguns parafusos que fixariam o equipamento na parede.

Despede-se de Débora com um pequeno aceno de mão. Entra no carro e segue para casa sem trocar uma palavra com o colega. Mexe vez ou outra com a cabeça como se concordasse com o quê aquele senhor de meia idade fala e gesticula com o cigarro na mão esticada para fora da janela, não presta atenção, pensa em Débora e seus cabelos cacheados.
O telefone dela está anotado em um pequeno pedaço de papel que retirou da embalagem da usa marmita, lembrou que Débora a lavou, secou e guardou para ele.

— Liga logo para ela!

— Como a senhora sabe se quero ligar pra alguém?!

— Esqueceu quem te criou? Esse andar pela casa, passando as mãos toda hora na testa, olhando para o relógio, isso é coisa de garota, ah se é!

Mostra o papel com o telefone para sua avó. Recebe seu apoio. Não tem dinheiro para levar a moça para um lugar legal, onde poderiam comer e conversar.

— Vó, vou pegar minha Donzela (assim chamava sua bicicleta), vamos ralar todo esse Natal. Vou chamar a Débora pra gente ir no baile Charme no Ano Novo!

Está em dezembro, o mês que mais aparecem entregas. No Natal ele trabalha praticamente a noite toda. Até um simples cachorro-quente as pessoas pedem nas noites natalinas.
Chega à noite de 25 de dezembro, algo diferente corre pelo ar, fica junto dos colegas na frente do Shopping perto de casa. Brincadeiras, rodinhas de conversa, jogos de baralho, passam o tempo sempre de olho no celular para ver os pedidos. A hora passa rápido, tem que ir até em casa para jantar, é uma tradição que sua protetora jamais abriu mão.
Vem uma mensagem de uma pizzaria, mas é estranha, pesquisa a mensagem, percebe que aquelas palavras sugerem que se trata de uma mulher pedindo socorro. Olhou o telefone, é o mesmo de Débora, não podia esquecer. Ficara olhando aquele número durante horas, até que decorou. Ela pode estar em perigo, mas a mensagem não era para ele. Deveria chamar a polícia. Monta na bicicleta e sem pensar vai atrás da mulher da sua vida.
Debora estava sentada no sofá da sala com duas amigas, riam e brincavam com o celular mostrando postagens variadas. Em uma das mensagens, Débora lê um bilhete de socorro de uma mulher que estava em perigo trancada com um maníaco dentro da sua própria casa. Descobre que aquele vídeo é na verdade uma simulação, ri da situação e resolve enviar um bilhete destes para um amigo entregador de pizza, como uma brincadeira. Diante do grande número de entregas, o rapaz repassou o pedido para Chico, mas esqueceu de apagar a parte que continha a brincadeira de pedido de socorro.
Chico chega no lugar onde está o pedido da pizza. Não percebe a aproximação de uma moto. Vem devagar pelo meio da rua pra não chamar a atenção e não fazer barulho. Um policial à paisana que chegava do trabalho, vê a movimentação de Chico e fica pensando que ele está ali para cometer um crime. Tira a arma da cintura e aponta na direção de Chico, dá um berro que assusta o garoto que tenta correr, mas o tiro sai quase que instantâneo e não dá tempo de nada, a bala pega direto na cabeça de Chico que cai imediatamente no chão.
Débora desce correndo e vê Chico caído no asfalto. Segura seu pescoço e tenta falar com ele, que não se mexe e tem os olhos fixados no nada. Espera o socorro, mas não sente qualquer reação de Chico. Só percebe o flash do celular de alguém tirando uma foto dela ali, com Chico nos braços.
No dia seguinte, em muitos sites trazia aquele rapaz morto no colo de uma moça e a manchete: Bandido morre no colo da amada!

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Somos duas amigas que compartilham de uma paixão pelas áreas da linguística e literatura, com isso, decidimos compartilhar nossos aprendizados, ideias, resenhas e outras coisas a mais…

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