A Casa Permanece Pronta

Autora: Maria Júlia de Souza.

24 de dezembro, 19h58

O calor gruda na pele como uma sombra incômoda, um verão de derreter o asfalto que transforma o Natal em uma prova de paciência. Elias empurra a porta da casa, o suor escorre pelo pescoço, e reclama como se o calor fosse uma decisão arbitrária de alguém lá em cima — talvez o próprio Papai Noel, cuidadoso demais para ajustar o termostato celestial.

— Se isso aqui é verão, eu voto pra abolir — diz, arrancando o gorro vermelho e jogando-o no encosto da cadeira. — Ninguém precisa de quarenta graus pra celebrar o nascimento de Jesus.

A porta ainda nem fechou quando a voz dele já inunda a sala, preenchendo o espaço vazio como um rio em cheia. Elias entra assim: sem filtros, sem aviso. Como se o silêncio fosse um erro a ser corrigido. Sua presença é um anúncio constante, um lembrete de que a vida precisa de barulho para existir.

A irmã, Clara, ri sem tirar os olhos do celular; os dedos dançam na tela enquanto responde as mensagens dos amigos. Sempre foi a mais próxima de Elias, cúmplice das histórias improváveis que ele inventava. Lembra de quando, aos doze anos, ele a convenceu de que o shopping escondia passagens secretas entre as lojas, como se fossem personagens de um jogo invisível. “A gente vê coisas que os outros não veem”, dizia ele. Clara acreditava — mesmo sabendo que era só uma maneira de escapar do óbvio.

— Você que escolheu trabalhar até hoje — retruca ela, com um sorriso irônico. — Podia ter dito não pro chefe.

— Escolhi nada — responde Elias, indo direto para a cozinha. — Fui escolhido pela escala injusta do capitalismo natalino.

A mãe, Ana, sorri enquanto mexe o molho no fogão. O avental manchado de gordura e vinho carrega marcas de outros Natais, que nunca saem por completo. Certas coisas não desaparecem: acumulam-se, ano após ano, até virarem parte do tecido da família. Ela lembra do primeiro Natal em que o pai de Elias se ausentou por trabalho, quando o filho, ainda pequeno, insistiu em montar a árvore sozinho, chorando porque as luzes não acendiam. “Mãe, o Papai Noel vai se perder”, disse ele. Agora, Ana vê nele o mesmo menino, sempre correndo contra o tempo.

— Lava a mão antes de mexer em tudo — diz ela, sem olhar.

Elias abre a geladeira e fica parado por alguns segundos, encarando as prateleiras como se esperasse que o gelo se materializasse por magia. O ar frio escapa, misturando-se ao cheiro da ceia: peru assando, farofa dourada e frutas tropicais — abacaxi, manga, goiaba — que fazem do Natal brasileiro um paradoxo entre calor e celebração.

— Por que sempre falta gelo quando mais se precisa de gelo? — resmunga ele.

— Porque você sempre esquece de fazer — responde o pai, Pedro, ajeitando os óculos. Trabalha numa fábrica de sapatos; o corpo traz marcas de anos de turnos longos. Ele e Elias brigam pouco, mas dividem um silêncio antigo sobre as ausências. Pedro observa o filho como quem se vê refletido, sempre correndo atrás. Às vezes, inveja aquela energia inquieta, a capacidade de transformar o comum em algo maior — algo que ele próprio deixou pelo caminho.

— Coerente — murmura Elias, pegando um copo de suco e sentando à mesa.

Glitter cobre o antebraço dele, o pescoço e, inexplicavelmente, atrás da orelha. Vestígios do trabalho numa loja de decoração de shopping, onde passa o dia inteiro montando árvores artificiais, ajustando luzes e sorrindo para pessoas apressadas.

— Hoje uma criança me perguntou se eu era um elfo de verdade — conta. — Pensei em dizer que sim, mas sindicalizado. Sabe, com direitos trabalhistas e tudo.

Clara ri, finalmente largando o celular.

— E você disse o quê?

— Que eu era estagiário do Papai Noel. Ele acreditou. A mãe, não.

A mesa está posta para cinco. Talheres alinhados, copos iguais, guardanapos dobrados do mesmo jeito de sempre. Tudo repetido com cuidado automático.

— Vou ali rapidinho — diz ele, levantando de repente. — Dez minutos. O Rafa viaja amanhã cedo. Preciso desejar boa viagem.

— Dez minutos seus ou dez minutos normais? — pergunta Ana, com um suspiro.

— Os meus são negociáveis — responde ele, piscando.

— Se eu não voltar antes da meia-noite, podem começar sem mim.

— Nem brinca com isso — diz Ana, com a voz mais baixa.

— Relaxa. Eu volto.

A porta fecha com um clique suave. O relógio da cozinha avança sozinho. Ninguém comenta. A casa continua funcionando como se isso bastasse.

Às 21h47, Clara manda mensagem:
“Tá todo mundo aqui.”

Visualizado.

Às 22h03:
“O peru já tá quase pronto.”

Visualizado outra vez.

— Ele deve ter se perdido falando — diz Ana, tentando se tranquilizar. — Sempre foi assim. Quando era pequeno, saía pra brincar na rua e voltava sujo de terra, contando histórias de aventuras que nunca aconteceram.

O peru sai do forno às 22h40, dourado e perfumado. A televisão exibe um especial de Natal, uma família sorrindo com precisão ensaiada demais para ser verdadeira. A casa cheira a comida quente e memória antiga — daquelas que permanecem mesmo depois que tudo esfria.

A cadeira de Elias permanece vazia.

Às 22h58, o celular de Pedro vibra. Número desconhecido. Ele atende em pé. Fala pouco. Ouve demais. Quando desliga, não volta a sentar.

— A gente precisa ir ao hospital.

— O que aconteceu? — pergunta Ana.

— O Elias sofreu um acidente. Um carro… na estrada. Ele estava indo pro Rafael.

A palavra “acidente” chega antes de qualquer explicação. Depois dela, ninguém fala por alguns segundos. Clara larga o celular, o rosto pálido. Pedro aperta os punhos, mas não diz nada. O silêncio volta a se instalar entre eles — o mesmo silêncio de tantos jantares, de tantas madrugadas chegando cansado demais para conversar. Ele pensa em todas as frases que nunca disse ao filho e percebe que nenhuma delas cabe mais em voz alta.

No hospital, o tempo é outro. Não corre: empurra. As cadeiras são duras, a luz branca constante, e o relógio parece marcar sempre a mesma hora. Um médico fala. Para. Volta a falar. Usa palavras difíceis demais para aquela noite: traumatismo craniano, perda de sangue, parada cardíaca.

Ana entende antes da última frase. Clara chora baixinho, abraçando o pai. Pedro fica imóvel.

— Posso ver? — sussurra Ana.

Elias está coberto até o peito. O rosto marcado, o corpo imóvel. A mão direita enfaixada. Na esquerda, ainda resta glitter dourado, preso à pele como se tivesse se recusado a ir embora.

Ela toca o rosto do filho com dois dedos. Frio. Como o gelo que ele sempre esquece de fazer.

À meia-noite, os fogos explodem do lado de fora. Dentro, a família volta para casa depois. Nada foi tocado. A ceia intacta. Os copos cheios. A cadeira vazia no mesmo lugar.

Ana serve um prato para Elias, como faz todos os anos. Ninguém pergunta por quê. Ela espera alguns segundos, como quem aguarda um atraso comum.

O tempo não se resolve.

Antes de apagar a luz, cobre o prato com um pano limpo.

A casa permanece pronta.
O relógio também.
Só o Elias não chega.

Epílogo — Um ano depois

O Natal seguinte vem com o mesmo calor excessivo. A cadeira de Elias continua vazia. Clara amarra uma pequena guirlanda no encosto, feita de fotos antigas e bilhetes dobrados às pressas.

Pedro se senta à mesa e conta uma história de trabalho que faria Elias rir. A risada não vem, mas a lembrança fica.

Ana cozinha como sempre. O avental se suja. O cheiro ocupa a casa. Em algum canto do chão, um pouco de glitter brilha sob a luz da sala. Ela varre depois, com cuidado.

A casa segue cheia. Apenas aprendeu a caber de outro jeito.

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Somos duas amigas que compartilham de uma paixão pelas áreas da linguística e literatura, com isso, decidimos compartilhar nossos aprendizados, ideias, resenhas e outras coisas a mais…

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