Autora: Anna Maria Mello.
Debruçada sobre o beiral da janela, olhava as luzes que piscavam. Eram tantas que me questionava se seria necessária aquela quantidade para decorar a fachada do shopping Higienópolis. Na rua, jovens abraçados cantavam em grupo, pessoas com sacolas nos braços esbarravam-se, atropelando umas às outras. Crianças caminhavam com seus supostos pais, pendurando-se em seus braços. Algumas paravam na beira da calçada, como se ensaiassem dar o primeiro passo para atravessar a rua lotada de carros, que pareciam ignorá-las.
Eu sempre gostei dessa data. As comemorações de final de ano na casa de tia Antonieta, irmã caçula de minha mãe, eram suntuosas, com a presença de muitos amigos e familiares. O melhor da festa acontecia quando meus primos e eu corríamos atrás do garçom para provar os drinques. Atribuíamos notas às bebidas. O vencedor quase sempre, por talvez ser o mais doce, era o “meia de seda”. O bom daquela brincadeira sempre foi estar fora do campo de visão dos adultos.
A piscina forrada por tábuas de madeira servia como pista de dança aos mais velhos; para as crianças, era um teste de resistência. Pulávamos até ouvir o ranger das tábuas. Sempre ficávamos com o coração na boca em pensar que a madeira partiria e como Alice seríamos sugados pelo buraco, afundando na piscina.
As mesas eram cobertas até o pé por toalhas quase sempre vermelhas; esconderijos perfeitos para a brincadeira de pique-esconde. Trajávamos vestidos longos que cobriam os buracos nas meias calças, provocados por tombos durante essas estripulias. Eu odiava vesti-las, queria poder ter coragem de arremessá-las ao lixo. Vendo os rombos, geralmente no joelho, pressentia a dor do beliscão de minha mãe, como no dia em que pisei na barra do vestido, antes mesmo de estreá-lo, deixando nele a estampa embarrada da sola do meu sapato.
À meia-noite, a música cessava para que ouvíssemos os sinos da missa do galo, na TV. Minha avó acompanhava palavra por palavra o discurso do papa, como se entendesse latim. Depois fazia coro aos fiéis que rezavam na praça de São Pedro. Era tão bonito ver aquela multidão, dizia ela ser a parte mais importante da noite. Exigia silêncio, alegando que Papai Noel não gostava de criança mal-educada.
Antes de servir o banquete, ouvíamos os passos, um ho ho ho vindo da garagem, descíamos correndo, empurrando uns aos outros, pulando os degraus da escada. Lá estavam inúmeras caixas, todas cuidadosamente embrulhadas com papéis e laços coloridos, dos quais pendiam etiquetas em papel cartão com nossos nomes escritos em letra de forma. Daí enlouquecíamos, despedaçando as embalagens em segundos, despertos pela curiosidade de saber se o Papai Noel tinha aceitado os pedidos de nossas cartas.
Um barulho em frente ao meu prédio me chamou a atenção. Talvez fosse um morador de rua remexendo as lixeiras, em busca de alimento. Na ponta dos pés, agarrei a rede de proteção para melhor avistá-lo; meu corpo pendeu para a frente, apoiando o peso sobre ela. Passou-me pela cabeça que coisas banais eu não poderia mais realizar. Será que eu conseguiria atravessar a rua, ir ao shopping, comprar os presentes para minhas filhas, ir ao supermercado em busca de ingredientes para preparar parte da ceia e levar à casa de minha irmã, como fazia todos os anos? Como é fácil ignorar as pequenas coisas, o corriqueiro.
Ressoou em minha cabeça a voz do oncologista, revelando a necessidade de realizar, de imediato, as sessões de quimioterapia. A lembrança daquela palavra trouxe consigo tantas outras: nódulo, carcinoma, metástase. A morte pairando acima de todas elas, gelada como o Natal em outro hemisfério.
As luzes do shopping cobriam toda a fachada do prédio. À distância, pareciam centenas de células minúsculas pulsando. Me perguntei como os cabos de energia elétrica suportavam tanta carga ao mesmo tempo. Eu tinha acabado de sair do hospital, uma internação que havia durado 30 dias por complicações pós-cirúrgicas. Um coágulo de 70 ml havia rompido em meu seio esquerdo, fazendo com que contraísse uma infecção generalizada, alterando o funcionamento de todos os órgãos; inclusive o pulmão, o que ocasionou graves problemas respiratórios.
Ela não está respirando, não reage aos medicamentos. Está entrando em choque!
Em um estado de consciência que não alcançava a superfície, tentava me expressar. Não podia ser de mim que estavam falando. As vozes iam e vinham como um sopro de vento aos ouvidos. Flashes do convívio com minhas filhas me faziam lembrar da importância de ainda permanecer com elas.
Ao chegar do hospital, na sala de minha casa, notei a caixa ainda ao pé da árvore. Nela estavam contidas bolas enfeitadas, aguardando minha palavra final. As luzes e laços já haviam sido colocados, distribuídos milimetricamente por minhas meninas.
Pedi que guardassem a caixa, decidi deixar a árvore como estava, com as luzes coloridas e os laços um pouco tortos, seguindo a lógica miúda das escolhas de minhas filhas. Aquele Natal não era o Natal que eu conhecia e que aprendi a reproduzir desde criança. Ainda assim, havia ali naquela árvore meio vazia um desenho possível de futuro feito sem mim. E ano que vem, independente do que acontecesse, seria Natal novamente.
