Janelas da Alma

Autor: Ricardo França de Gusmão.

Nunca existirá a mais absoluta distância, enquanto pudermos abrir as janelas pinceladas nas paisagens das obras de arte

Naquele Natal, as lembranças vinham pela janela da memória, com perfume de presença capturadas do tempo, com lógica de fotografia. O Dr. Richard Mennon, em seus quase 80 anos de vida, havia preparado a casa com simplicidade. Iria receber a sua única filha, Ana Rosa, uma jovem formada em psicologia, cuja face era uma cópia revelada de sua mãe, Maria Terra, já falecida.

A presença de sua mãe, no entanto, era sentida por Richard e Ana Rosa, seja pelos móveis, com design de passado, que ela tanto gostava, ou pelos quadros que Maria Terra pintou um ano antes de fazer a passagem. A natureza, as paisagens do campo, casas humildes, eram os temas predominantes.

O acidente de automóvel ocorrido cinco anos após o casamento ainda era um peso na vida do Dr. Richard. Médico, fez tudo para ressuscitá-la, após bombeiros a terem retirado das ferragens do veículo em destroços. Após 20 minutos, fizeram-no parar. Maria Terra não resistira. À época, Ana Rosa era recém-nascida. E coube ao Dr. Richard cumprir, também, o papel materno. E assim o fez. Nunca mais casou. Seu amor era incondicional.

Após o acidente fatal, trancou o quarto de casal, da forma como ele estava naquele dia. E fechou, com tranca, a janela que dava vista para a mata e um riacho. Passou a dormir no quarto de hóspedes. E o tempo passou. Os dias viraram meses, os meses viraram anos, os anos tornaram-se décadas.

Era manhã cedo quando Ana Rosa estacionou o seu carro, após passar pela porteira do sítio. Tocou diversas vezes a buzina, até seu pai abrir a porta da frente, ainda vestido de pijama.

— O que é isso, menina! Enlouqueceu?!

— Bom dia, meu pai querido! Hoje é véspera de Natal! É dia de nascimento, de alegria! Trouxe um presente para o senhor. Vou descarregar a mala. Tem um tanto assim de comida para a nossa mesa. Incluindo um carneiro, pois sei que o senhor adora! — respondeu Ana Rosa, sem dar tempo de seu pai coatenar, de maneira “linear”, o que estava acontecendo. A única palavra que se repetia em sua mente era: “É Natal! É dia de Nascimento!”.

Após tomarem café, puseram-se às tarefas. Doces, salgados, vinho, condimentos, frutas… Tudo para a virada da meia-noite. Até que chegou o momento do almoço.

— Toma, pai, é arroz com lula… e camarão! Há quanto tempo o senhor não come frutos do mar?

— A minha memória já não é a mesma de antes, minha filha. Me diga. Quando você irá casar? Estou aguardando um neto…

— Pai, estou namorando um rapaz. É de boa família — assegurou Ana Rosa.

— E o que ele faz para ganhar a vida, minha filha? — retrucou o pai, investigando.

— É arquiteto, pai. Estamos pretendendo morar juntos — confortou a psicóloga.

— Mas como assim morar juntos? E o casamento? — Dr. Richard demonstrava não estar “antenado” com os novos tempos.

— Hoje em dia a coisa inverteu, paizinho… Primeiro, a gente vive junto pra ver se vai dar certo. Depois, então, a gente casa! — explicou Ana Rosa.

— Mas não será na igreja? — insistiu Dr. Richard.

— Pai, seria só no civil, no cartório. Mas se for do seu desejo… Eu caso também na igreja… — prometeu.

— É que… Todos esses anos… Eu guardei o vestido de noiva da sua mãe… Ele é do seu manequim… Seria uma homenagem… — revelou o pai.

— Nossa, pai? O senhor fez isso?

— Sim, minha filha.

— E onde está ele? — perguntou Ana Rosa, demonstrando ansiedade.

— Está no nosso antigo quarto. Trancado no armário. Nunca mais abri. Isso já faz 30 anos, mas deve estar em boas condições — assegurou.

— Pois eu quero ver! E quero passar a meia-noite com ele!

— Sim, filha. Mais tarde eu abrirei o quarto. Será seu presente de Natal — Dr. Richard, por fim, fez a revelação do dia.

— Pai, o senhor é maravilhoso! Será lindo eu me casar com o vestido de noiva da mamãe… — agradeceu Ana Rosa, já se imaginando no vestido da falecida mãe.

— Vocês são muito parecidas… Por falar nisso, já experimentou pintar quadros? — Dr. Richard queria saber mais sobre a filha. Já não se viam há cerca de um ano.

— O senhor deu para ser adivinho, é? Já sim! Aliás, as paredes do meu apartamento são cheias de quadros! Óleo sobre tela…

Agora sim, com a revelação, Dr. Richard tinha certeza de que sua filha era a “cópia genética” de sua falecida esposa.

— É? É uma felicidade, minha filha. Você tem mesmo o DNA dominante da sua mãe. Qual é o seu tema preferido?

— Pai… Eu comecei com natureza morta… Pintura acadêmica… Mas enjoei. Estou fazendo um ensaio cujo tema são janelas…

— Janelas? — perguntou, com espanto. — A sua mãe tinha fascinação por janelas… Não sei até hoje o que ela via nelas… Coisa de artista… Não é científico.

— Gostaria de ter crescido e convivido com ela. O senhor cuidou de mim muito bem. Me deu carinho, conforto, segurança, educação, amor… Mas, sabe pai… Tenho a sensação que a minha mãe está sempre comigo… — confessou Ana Rosa.

— E está, minha filha. Sempre estará com a gente. Você seria um orgulho pra ela. Uma psicóloga na família! — elogiou.

— Uma psicóloga, um médico, uma pintora e, futuramente, um arquiteto! — sorriu Ana Rosa, abraçando o pai. — Pai, quando vocês casaram mesmo?

— Filha… Sabe por que o Natal é uma data muito triste para mim? — indagou Dr. Richard, com voz de tristeza.

— Diga, pai, por favor…

— Você se esqueceu…? Eu e sua mãe nos casamos no dia 25 de dezembro…

— Nossa, pai… Mas olha… Não é para ter tristeza. É uma data mais feliz ainda. Abençoada! — tentou amenizar o clima a psicóloga.

— É o que tento dizer todos os anos para o meu coração. Mas ele é “burro” que nem um “fígado” — retrucou, agora, o médico.

E assim terminou o almoço do dia 24 de dezembro. Na sala da casa de campo, Ana Rosa abriu uma das bolsas e retirou uma pequena árvore de Natal. E um boneco a pilha de Papai Noel, que balançava e tocava música. Não podia faltar o bolo na mesa. E bolinhos de bacalhau. Era, enfim, Natal.

— Ana! Venha cá. Já está na hora de dar o seu presente… — chamou Dr. Richard.

O médico e a filha foram até o quarto fechado. Dr. Richard pegou um chaveiro em um dos bolsos. Segundos depois, estava com a chave do quarto que, há 30 anos, estava trancado. Ana Rosa estava tensa. Afinal, era muito pequena e não sabia como era o quarto dos pais que, para ela, fora um mistério de uma vida inteira. Agora, prestes a ser revelado.

Dr. Richard encaixou a chave, rodou duas vezes… E…

— Como assim??? A janela está aberta??? — surpreendeu-se Dr. Richard.

— Pai, eu caminhei pelo sítio hoje e a janela estava fechada…

— Será que foi arrombada? Deixa eu ver a tranca…

A vistoria do Dr. Richard não encontrou nada de anormal. A janela parecia ter sido aberta por dentro. Não havia sinais de arrombamento ou de tentativa.

— Filha… O que está acontecendo aqui? A janela está normal. Só pode ser aberta por dentro. Mas a porta está trancada há 30 anos!

— Pai, será que o senhor trancou direito a janela? Se a tranca estava em falso, o vento pode tê-la aberto. Não há outra explicação…

— Você está certa. Posso não ter trancado corretamente… O quarto não está remexido. Está tudo no lugar. Nada, aparentemente, foi roubado — afirmou, sem acreditar no que estava afirmando, Dr. Richard.

E sua filha percebeu. Tentou amenizar o problema.

— Pai! Olha… São objetos da minha mãe…

— E meus também, filha…

— Nossa… Bolsas… Pincéis… Tripé… A tela de um quadro inacabado… Parece um anjo… — observou.

— Ela iria colocar na parede do quarto… — contou Dr. Richard.

— Pois eu irei terminar de pintar! — prometeu, pegando o quadro do tripé.

— Mas espere, filha. Você terá tempo para ver as coisas da sua mãe… Deixa agora eu te dar o meu presente…

Novamente com um chaveiro na mão, Dr. Richard abriu o guarda-roupa. Pegou uma mala de couro e deu para Ana Rosa. Ela abriu.

— Nossa! O vestido é todo bordado! E branco, com pérolas brancas… Veja pai, é do meu tamanho!

— Sim, filha. Vá se arrumar e vestir. Vamos relembrar e homenagear a sua mãe… E você, que é quase esposa… Vou fechar a porta. Amanhã você pode ver as coisas da sua mãe. São lembranças suas. Guardei para esta ocasião…

— Sim. Mas pai… Fecha a janela de novo. E verifica a tranca.

Antes de a janela ser fechada, Ana Rosa foi até ela e viu a paisagem, frente a uma casa humilde, o riacho e a mata. A mesma que inspirou sua mãe. E saiu.

— Pronto, filha. Janela novamente fechada…

Ao passar pelo corredor principal da casa, onde estava o quadro pintado com a paisagem vista da janela, Ana parou novamente. E procurou entender o motivo de sua mãe ter pintado a casa próxima à mata e ao riacho. Na tela, a humilde casa estava com a janela fechada. Assim como ficou na casa de “verdade”, durante 30 anos. Havia algo entre as imagens, como num jogo de espelhos, em que a janela era um elemento significativo.

Dr. Richard abriu uma garrafa de vinho quando sua filha chegou, com o vestido de noiva usado por sua ex-esposa, Maria Terra. Estava com cabelos presos, com um longo “rabo de cavalo”. A semelhança impressionava.

— Filha! O seu namorado vai casar com a sua mãe! Como são parecidas! — brincou Dr. Richard.

— Sim, pai. Ao colocar o vestido fiquei imaginando como ela era. Como era o relacionamento de vocês… Como se conheceram?

— Como diz a música… “acaso do acaso…”. Eu brincava o carnaval em uma das ruas do centro histórico da cidade… Estava vestido de “Zorro”… Um herói mascarado da minha época… Sua mãe estava em uma janela, numa pequena sacada. Foi quando nossos olhares se encontraram pela primeira vez. Ela estava com uma fantasia de bailarina. Sempre teve o corpo esbelto, como você. Trinta minutos depois já estávamos abraçados e nos beijando, na multidão… — recordou.

— Engraçado… A janela parece que foi uma constante na vida da minha mãe… — refletiu Ana Rosa.

— Sim. Pode ter sido. Afinal, a vida é uma passagem de janelas abertas e fechadas. Depois de hoje, acredito que o que faz a diferença é o “trinco”. A fechadura…

E assim foi a conversa entre pai e filha, até que o relógio acusou meia-noite. Abraços natalinos. Mais taça de vinho… “Contação” de histórias antigas e inéditas… Até que os dois foram para seus quartos.

Dr. Richard, não acostumado a tanto vinho, adormeceu de imediato. Ana Rosa ficou acordada… Com o pensamento no estranho fato não explicado da janela aberta por dentro, no quarto fechado. E adormeceu, olhando o quadro do anjo, metade pintado, sobre a cômoda.

Logo o sol de Natal surgiu. Ao longe, o canto e a revoada de espécies de pássaros. E o murmúrio do riacho, que parecia estar dentro de casa. Os sons do campo revelavam a rotina da natureza e a calma da vida que não necessita de pressa para ser vivida. Como se a velocidade do “imediatamente” fosse proibida. Tal qual um acidente de automóvel.

Ainda com o vestido de noiva, Ana Rosa, na cama, respirou fundo o ar da manhã. Ficou uns minutos pensando na conversa que teve com seu pai. Até que levantou-se. Lavou o rosto no lavabo. Bebeu um copo de água da moringa que havia sobre uma mesinha, no canto do seu quarto…

E, estranhando o silêncio — seu pai acordava cedo — foi procurá-lo.

Gritou por seu nome… Sem resposta. Foi até o quarto dele. Não estava na cama. Percorreu a casa inteira: banheiro, cozinha, sala… Saiu e olhou as cercanias da fazenda… Nada.

Até que resolveu percorrer a ala do corredor onde estava o quarto de casal e os quadros na parede. E tomou um susto. A porta do quarto estava aberta. Contudo, o mais estranho é que, novamente, a janela também. Destrancada por dentro. E havia um par de sandálias caídas no chão. Eram as mesmas que o Dr. Richard usava na passagem do dia 24 ao dia 25.

Teria ele pulado a janela? Mas por quê?

Ela olhou pela janela à procura do pai. Nada encontrou. Estava sozinha não só na casa. Mas no sítio.

O coração de Ana Rosa começou a bater forte. Algo estava acontecendo. Algo inexplicável.

Foi quando ela foi ao corredor e encontrou uma espécie de livro caído no chão, abaixo do quadro da paisagem da casa na frente do riacho. Ela olhou para o quadro e um arrepio percorreu seu corpo. A janela da casa estava aberta, agora, na pintura. E nela, estava um casal. A mulher, pintada com um vestido de noiva, e o homem, com um terno. Estavam abraçados.

Nesse momento, Ana Rosa olhou novamente para o chão, pegou o caderno… Era um álbum. Um álbum de família. Da família dela. Estava aberto na página de uma foto grande, em preto e branco. Era um casal de jovens, num altar, na hora de trocarem as alianças. Nervosa, a jovem exclamou…

— Pai? Mãe?

Era o álbum de casamento de seus pais. Preso ao álbum, com um grampo, um bilhete.

Ana Rosa, que em seguida, ainda sem entender o que estava acontecendo, leu o bilhete, escrito à mão:

“Eu, Richard Mennon, aceito você, Maria Terra, como minha legítima esposa e prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida, até que a morte, essa janela, não nos separe, mas nos eternize, em clausura de liberdade, na tela de uma obra de arte.”
(Feliz Bodas de Ouro, meu amor. Ass.: Dr. Richard Mennon, Dia 25 de dezembro de 2021).

Aquele dia seria as Bodas de Ouro de seus pais. E há histórias na vida que não precisam de explicação. Porque elas tornam-se belas quando não são explicadas.

Ana Rosa encostou-se na parede e deixou-se “escorregar”. Sem saber o motivo, pôs-se a chorar, com a certeza de que a janela para o eterno amor fora aberta para seus pais.

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