Autor: Roberto Schima.
Um fio de esperança — tênue, a bem da verdade — cerzia as cicatrizes do passado, afinal, o calendário marcava a véspera de Natal.
Era o meio da tarde, e, na atmosfera cheirando a bolos e perus assados, pairava a promessa de uma noite bastante fria no exterior e aconchegante nos lares. As casas se enfeitavam de luzes coloridas, chumaços de algodão, mensagens de fé, de amor e de esperança.
O homem solitário tomava um copo de licor. Seus dedos tamborilavam no braço da poltrona. Pretendia cofiar a barba, mas o movimento foi interrompido por um som estridente.
O telefone.
Largou o corpo e, depressa, tirou o aparelho do gancho.
Do outro lado, chegou a voz de um abismo:
— Alô, Sr. Souza?
— Quem mais? Encontrou-a, detetive?
Houve a pausa de um suspense desnecessário.
— Achei! Finalmente, após tanto tempo e tantas investigações.
Só então, Sr. Souza, um bem-sucedido executivo de uma multinacional, deu-se conta do quanto pressionara o braço da poltrona. Procurou controlar a voz a fim de ocultar sua excitação.
— Traga-a para mim!
Houve uma outra pausa, desta feita, necessária.
Impaciente, o rico cliente falou:
— Detetive Silva! Você me ouviu?
Em sua mente, o executivo vislumbrou o velho de setenta e tantos anos: cabelos brancos e ralos, óculos com lentes de fundo de garrafa, bigode espesso e desgrenhado, trajes desleixados. Não prometera muito da primeira vez que surgira em seu escritório havia quase cinco anos, todavia, fora bem recomendado pelo próprio vice-presidente da companhia. Então, contratara o homem, mais para agradar ao superior do que por confiar na eficácia do idoso. Agora, porém, pareceu que iria engolir as próprias palavras até engasgar. Não reclamou por isso.
Do outro lado da linha, o detetive respondeu:
— Si-sim, senhor. Contudo, preciso avisá-lo: não pode ser removida.
— Eu exijo que me traga aqui! Para isso lhe paguei uma fortuna e…
— O senhor não entendeu. A Sra. Butterfly está morrendo…
A última palavra cortou feito um fio de navalha.
O copo de licor se espatifou no piso.
— Alô?!… Sr. Souza?
Foi a vez do executivo gaguejar, rispidez quebrantada:
— Pa-passe-me o endereço.
Ao encerrar a ligação, de um canto da sala tornado sombrio veio a voz:
Eu não disse que seria encontrada?
Não obstante o medo, o Sr. Souza procurou manter a pose:
— Poderia ter tido sucesso há cinco anos… Fizemos um trato!
Segure a língua se não quiser engoli-la junto a um punhado de fezes! Em desespero, você assinou o acordo, mas eu dito as regras. O sucesso foi ao meu favor… como sempre. Alimentei-me de sua ansiedade, medo, vergonha e aflição. Regozijei-me. Agora, perto do Natal, decidi lhe dar um presente. Ao menos o tom escarlate eu tenho em comum com Papai Noel, não acha? Agradeça-me!
Não foi um pedido.
— O-o-obrigado…
Bom menino. Agora, vá!
E o canto deixou de ser sinistro.
***
O veículo conversível partiu do bairro luxuoso, situado no ponto mais alto da cidade, e dirigiu-se para a periferia ladeira abaixo. Quanto mais se afastava do centro da cidade, mais simples e degradadas eram as construções e as avenidas, e maior o volume de pichações nas paredes e imundícies nas esquinas. Uma nojeira visual, auditiva e olfativa. Qualquer ricaço ficaria horrorizado. Contudo, o Sr. Souza não se mostrou chocado, afinal de contas, ele próprio viera de lugares assim.
Os cenários que se sucediam, traziam-lhe um gosto amargo de nostalgia.
A medida em que dirigia, imagens do passado desfilaram perante seus olhos. Fizera questão de ignorá-las, fingir para Deus e todo mundo que jamais existiram. Contudo, não podia ocultá-las do reflexo diante do espelho.
Recordou-se do barraco em que nascera, dos pais que o viram como um estorvo, o filho indesejado, a boca a mais para alimentar, a razão pela qual discutiam tanto e tudo parecia dar errado. Os xingamentos. As surras. A fome. O frio. O terror. Até o dia em que, criança ainda, fora posto para fora, sem ter aonde ir.
Caminhara por entre a escória, continuara a apanhar e a falta de comida corroía suas entranhas feito um verme em carne podre. Até uma noite fria quando, meio inconsciente na sarjeta, sentira ser carregado por mãos mornas, ternas e macias.
E uma voz melodiosa e gentil dissera:
— Pobrezinho! O que a vida fez a você?
Souza nunca vira um anjo, embora tivesse ouvido falar dessas criaturas celestiais. Para ele, um anjo o encontrara, carregara, acolhera e aquecera.
Acordara sobre uma cama. Perto dele, a tigela de sopa mais cheirosa e deliciosa que jamais provara, ainda que não passasse de macarrão instantâneo acrescido de fatias de cenoura e batata. Sentira-se no paraíso e, diante dele, vira pela primeira vez o seu anjo. E ele possuía a forma de mulher.
— Calma, tome devagar senão irá engasgar. Como se chama?
— Souza — balbuciara entre uma colherada e outra.
— Bom apetite, Souzinha. Tem mais se quiser.
Apenas após a terceira tigela, o menino se dera por satisfeito.
— Minha nossa — dissera ela —, é um saquinho sem fundo!
E rira.
Fora o som e a expressão mais maravilhosos que Souza presenciara em toda a sua curta existência. Quanto a voz, soara aveludada, um afago, um achego e trouxera dentro de si toda uma ternura sonhada:
— Meu nome é Maria, mas pode me chamar pelo meu apelido, Butterfly. Não se preocupe mais: cuidarei de você. O mundo não irá magoá-lo outra vez.
Souza tornara a dormir e, se tivesse morrido, pereceria feliz.
Butterfly era prostituta.
Sua história não fugia àquela de outras tantas mocinhas que saíram de seus recantos isolados atrás do sonho de riqueza, glamour e fama. As portas não se abriram. O dinheiro terminara. Fora na conversa de pessoas erradas. Entregara-se ao sexo, acreditando ser amor. E terminara em um buraco do qual, mesmo se pudesse sair, nunca mais poderia retornar ao mundo de inocência de onde viera.
Mudara de nome. Desaparecera. Sabia de longa data das misérias da vida, do quão depravado o ser humano poderia ser. Mil vezes afundara na amargura e pretendera tirar a própria vida e retornara à tona sem saber o porquê.
Agora, contudo, vira no menino uma razão que sustentasse a sua existência.
Conforme prometera, Butterfly dera abrigo, cuidara e alimentara o esquálido garotinho. Nunca misturara seu modo de vida com sua vida particular. As quatro paredes onde vivia eram o seu refúgio.
Por vezes, o pequeno Souza quisera saber o porquê dela aparecer de vez em quando com arranhões, hematomas, mancando e o olhar marejado. Todavia, ela sempre abraçara o menino, cobrindo-o de dengo.
— Ah, anjinho, anjinho meu!
Não deixava, pois, de ser curioso, precipitado, talvez até temerário: para ela, era Souza o anjo, ainda que o moleque nada tivesse feito por merecer.
Butterfly se esforçara por encaminhá-lo à escola.
— Estude bastante, Souzinha. Tenha o futuro que nunca tive.
— Como sabe o que eu preciso fazer?
— Porque é tudo o que eu devia ter feito e não fiz.
A princípio, o menino não compreendera. Em retribuição aos cuidados recebidos, por menos que gostasse, esforçara-se por aprender a ler e a escrever. Um dia, fizera uma descoberta e comentara encantado:
— Seu apelido é borboleta!
Sua mente infantil não deixara de pensar no quão apropriado fora tal escolha. Apesar de Maria não ser um anjo de verdade, o inseto tinha em comum a beleza e a capacidade de voar. Flutuavam ao vento, assim como os anjos entre as nuvens, e davam cor à fealdade cinzenta da cidade.
Claro que Souza não traduzira sua admiração nessas palavras, mas assim seriam, caso tivesse idade o bastante para se expressar. Em sua ingenuidade de criança, ele a amava.
Maria, por seu turno, sorrira sem jeito, constrangida ao pensar na borboleta tatuada próxima à sua virilha, razão do apelido. Fitara o menino nos olhos, livre de todas as máscaras e disfarces que, cotidianamente, utilizava.
— Das coisas que me aconteceram na vida, encontrá-lo foi a melhor delas.
O menino despertara nela emoções que não acreditava mais possuir, fizera renascer do solo árido sentimentos havia tempo esmagados.
— Você salvou minha vida — reconhecera o pequeno Souza.
— E você a minha — dissera a mulher.
— Mãe! — chamara ele, abraçando-a.
A alma de Butterfly explodira de felicidade.
Entretanto, o tempo podia moldar e mudar as pessoas, assim como as ondas tempestuosas esculpiam e demoliam penhascos. Ou seria fruto daquela voz tenebrosa, pérfida e insinuante que, em dado momento numa véspera de Natal, fizera-se manifestar ao garoto?
Surgira a princípio como um pesadelo quando o sono se fazia mais profundo, e ganhara contornos de realidade à medida em que a escuridão se tornara mais densa, gélida e aterrorizadora:
Souzinha?
Havia uma ironia cruel pela maneira como a voz imitara o chamado de Butterfly. Do interior das trevas, surgira uma figura monstruosa, meio humana, meio bode, na qual os tons carmesins predominavam.
Souzinha…
Os olhos eram dois poços de rubro ardente. A boca, um esgar de presas afiadas. O corpo, o Mal personificado. E quanto aos chifres? E os cascos?
O menino gritara, porém auxílio nenhum tivera. A mulher não se encontrava lá para acudi-lo, ocupada em ganhar o “pão nosso” e comprar o carro de brinquedo por ele tão desejado.
Por que a manifestação começara a surgir num fim de ano e após a puberdade era um mistério tão sem resposta quanto a sua própria natureza infame. Realçara-se na mesma proporção em que os pelos surgiram no púbis e nas axilas de Souza.
A voz berrava dentro de sua mente:
SOUZINHA!
O diminutivo nunca soara tão aterrador.
Butterfly ouvira o queixume desesperado do menino. Atribuíra ao fato dele não gostar de ficar sozinho à noite, à idade, aos pesadelos e outras causas naturais. Como poderia supor que algo além de sua compreensão passara a atormentar o garoto? Já havia assombrações demais em sua vida.
Chegara o dia em que, enfim, Souza compreendera o que a mãe adotiva fazia para ganhar a vida e a razão dos outros pivetes insistirem em zombá-lo e xingá-lo de filho da…
Nesse dia, ficara acabrunhado por um longo tempo e não houvera gracejo ou mimo de Butterfly que o fizesse sorrir. Pelo contrário, Souza ficara em seu canto, evitando até mesmo olhar para ela. Inventara alguma dificuldade qualquer na escola e, assim, a mulher deixara-o em paz, embora paz fosse o que menos o menino conseguira encontrar.
No fundo de seu cérebro surgira a voz áspera, atrevida, cruel, amedrontadora e familiar:
Se sua vida fosse uma eleição na qual nenhum dos candidatos valesse um tostão furado, o que você escolheria para colocarem na sua comida durante quatro anos: ranho ou pus?
Que pergunta era aquela? Que tipo de opção?
Então, acontecera, quando, por fim, Souza optara.
Ocorrera após conseguir o seu primeiro emprego, adolescente ainda. Percebera que poderia se manter por conta própria. Assim, fugira de onde morava. Sem avisar. Sem agradecer. Sem deixar bilhete algum. Nada. Apenas desaparecera entre a multidão.
Fizera o possível para esquecer o passado e ocultar do mundo a vergonha que sentia. Vergonha dos pais. Vergonha da pobreza. Vergonha de Butterfly.
Não refletira em um só momento sobre a aflição que teria dominado a mãe adotiva e tudo o que ela fizera e sacrificara por ele.
No fundo de sua mente, aquilo gargalhava.
Bom menino…
Os anos passaram e o jovem Souza progredira na vida. Através de inúmeras artimanhas, sem se preocupar quem fosse necessário usar ou pisar, enriquecera, com direito a uma casa luxuosa, piscina, empregados e ações na bolsa de valores.
Nunca se casara ou tivera família, contudo, em todos os dias das mães e natais, não obstante a fartura material e sucesso profissional, uma nuvem cinzenta toldava a visão e um vazio imenso se apoderava da alma.
Invariavelmente, seus pensamentos retornavam para a única pessoa que, de fato, o amara e a qual, de forma covarde, cruel e ingrata, abandonara.
— Mãe…
Consumido pelo remorso, passara a procurar a mulher por todos os locais. Embrenhara-se no mundo miserável, corrompido e sórdido do qual se originara. Todavia, a exemplo de uma flor a desabrochar no estrume, fora nele que encontrara a emoção mais pura e sincera.
Portanto, em vez de altruísmo e genuíno arrependimento, continuava a pensar mais em seu próprio bem-estar, por mais que enganasse a si sobre as boas intenções. Afinal, de boas intenções…
Suas incursões resultaram infrutíferas e perigosas, sendo perseguido por meliantes em mais de uma oportunidade. Acabara por contratar o idoso detetive Silva, o qual, munido de poucas informações — não havia o nome completo e sequer uma foto de Maria —, partira para as investigações.
Entrementes, às vezes o impossível se transformava em realidade. Não se podia dizer por fruto da sorte ou do acaso. Em particular, pouco antes do Natal.
Pesar-se-ia o bem e o mal.
Et cetera e tal…
***
Agora, finalmente, Maria — vulgo Butterfly — fora localizada. Seria coincidência ser justamente numa véspera de Natal? Revê-la seria o presente recebido pelo rico executivo. Mas o que estaria disposto a dar em retribuição?
Bate o sino pequenino, sino de Belém…
Quem sabe, levá-la-ia ao hospital. Teria um tratamento decente e recuperar-se-ia. Daria em troca tudo o que ela fizera por ele e compensaria os danos representados pelo seu desaparecimento. Seria justo, não seria?
O local em que a mulher estava não podia ser mais miserável. Era um quartinho cujas paredes aparentavam jamais terem sido limpas ou repintadas. Uma lâmpada fraca, suspensa por um fio encardido, pendia do teto. Fedia a mofo, madeira podre, poeira, comida azeda e urina. O estômago do executivo ficou embrulhado quando suas narinas inspiraram a atmosfera enclausurada. Tossiu, trazendo o lenço para junto do rosto.
Atravessou relutante os poucos metros que separavam a porta da cama. E a viu.
A visão de Butterfly chocou o executivo.
Tornara-se um trapo fantasiado de gente. Os anos de uma vida desgraçada e infeliz consumiram toda a vitalidade da ex-prostituta. Embora não tivesse mais do que cinquenta anos, aparentava duas décadas a mais. Era pele e osso. Cabelos grisalhos sujos e emaranhados.
O tempo rabiscara milhares de rugas sobre o rosto, pescoço e colo, códigos em pergaminho a narrar incontáveis infortúnios. Nos braços, marcas arroxeadas de muitas injeções; nos pulsos, cicatrizes de cortes antigos e recentes. Não fosse pelo movimento quase imperceptível em seu peito, dir-se-ia que o anjo da morte fizera descer sobre ela o tecido frio da mortalha.
O Sr. Souza, trespassado pela espada do arrependimento, soluçou tão forte que o corpo se dobrou. Ajoelhou-se aos pés da cama no chão imundo, manchando as calças de grife na altura dos joelhos. O leito não passava de um estrado montado de restos de pallets e tábuas.
Tomou uma das mãos, tão frágil quanto uma crisálida ressequida, e, de olhar marejado, chamou-a através do abismo:
— Mãe…
Precisou repetir mais algumas vezes até a mulher precocemente envelhecida esboçar uma reação.
Butterfly custou a erguer as pálpebras. A princípio, eram duas janelas translúcidas e sem vida, mas, quando se deu conta de quem estava junto de si, iluminaram-se. A mão fraca apertou a mão do Sr. Souza com uma energia que contrariava o estado de saúde da mulher.
— Anjinho?… — balbuciou. — Anjinho!
— Mãe!
A criança dentro do homem chorou: de tristeza, de felicidade, de embaraço.
— Mãe, eu…
— Não fale. Deus, como você cresceu… Está de barba! Ah, tão bonito… É feliz, Souzinha?
— Estou feliz agora.
— Eu também… Finalmente, sou feliz.
— Vou tirá-la daqui. Cuidarei da senhora. Farei de tudo…
Ela tornou a pressionar a mão do executivo. Pedia silêncio. Após ser atendida, disse:
— Estou feliz. Estou em paz. Estou grata. O que mais poderia querer?
Sem saber ao certo o que responder, o Sr. Souza exclamou:
— Feliz Natal, mãe!
— Feliz Natal, anjinho…
A seguir, a mão encarquilhada afrouxou, as pálpebras tornaram a se fechar, o palco escureceu e o calor lentamente abandonou o corpo da mulher e o teatro da vida.
Trêmulo, o executivo pranteou num misto de emoções, feito a criança que um dia fora.
A madrugada ia alta quando o Sr. Souza, em seu conversível, retornou para casa, no bairro nobre da cidade. Pagara uma soma considerável pelos honorários do detetive. Providenciara um sepultamento adequado à mulher no cemitério onde apenas pessoas ilustres tinham sido enterradas.
Estranhara as últimas palavras do velho detetive Silva, homem que, durante anos, trabalhara para ele e se dirigira para o convívio familiar onde participaria da ceia ao lado da esposa, filhos, netos e bisnetos:
— Não obstante a sua perda, Feliz Natal, Sr. Souza. Se necessitar de algo, não hesite em me chamar.
Enquanto atravessava a cidade, deixando para trás as pichações, as imundícies e as demais ofensas aos sentidos, o executivo questionou:
Quem era o mais bem-sucedido?
Quem estava mais contente?
Quem dormia em paz?
Nada difícil saber.
No auge de sua aflição, em vez de se voltar para a Luz, optara pelas Trevas.
O sucesso profissional também fizera parte do nefando pacto?
Enquanto as luzes se sucediam sobre o asfalto, a voz se fez ouvir:
Oh! Oh! Oh! Feliz Natal, Souzinha! Seu presente foi o derradeiro adeus; o meu, a sua dor sem fim.
— Quem diabos é você?
Ora, ora, ora… Acertou em parte. Deram-me vários nomes: Pã, Satanás, Krampus… Por aqui, também me chamam de Homem do Saco.
— Qual o verdadeiro?
Não é da sua conta, balde de esterco! Basta que saiba: seu sofrimento não terminou. É apenas o princípio. É minha guloseima. E dele continuarei a me alimentar até a obscuridade que me compõe afogá-lo por completo. Então, meus grilhões prenderão sua alma à agonia eterna!
— Mate-me de uma vez! — implorou.
E perder a diversão? Sua sede, licor algum irá mitigar. Você foi um mau menino. Minha função — eu diria satisfação — é punir os malvados. Quanto mais demorado e lento for o suplício, melhor. Assim como longa e vagarosa foi a aflição da pobre Maria. Coitadinha!
Afinal, alguma coisa nós temos em comum, Souzinha, tanto quanto eu divido o escarlate com Papai Noel.
— O que é?
Ah, Sr. Executivo, como pode não se lembrar? Ambos somos anjinhos…
A gargalhada histérica soou e ecoou dentro da cabeça do Sr. Souza.
O veículo seguiu escuridão adentro, por entre o silêncio do asfalto, enfeites luminosos, neve falsa e aromas de peru. Embora vacilante, seguiu o trajeto correto ladeira acima até a moradia requintada; todavia, em seu interior, o rumo do executivo jazia para sempre perdido.
Nada do que fizesse iria conduzi-lo ao caminho de volta. Em especial naquela manhã tornada sagrada, sob o brilho de um novo Natal e o raiar de um novo dia.
